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133 anos do advento da laicidade no Brasil. Por Elianildo da Silva Nascimento

133 anos do advento da laicidade no Brasil. Por Elianildo da Silva Nascimento

A mitologia romana trouxe dentre os seus deuses, a divindade “Janus”, também conhecida como “Jano”, que era representada por uma figura que tinha uma face voltada para a frente e uma outra face direcionada para trás, deidade esta que veio inspirar a nomeação do mês de janeiro de cada ano em momento que são estabelecidos os dozes meses. 

A face da divindade que olha para frente, traduz o sentido de que a mesma vislumbra o porvir, norteia o olhar para o futuro, enquanto a face voltada para trás, parece observar o que passou, e esta simbologia nos vem à mente neste momento que novamente iniciamos um curso rumo ao que virá, associado também simbolicamente estas passagens, como um recomeço.

Se é um recomeço, que tal olharmos para trás e lembrarmos que em 07 de janeiro de 1890, exatos a 133 anos atrás, o advento do Decreto 119-A, institui a separação Estado/igreja no Brasil, promovendo a liberdade de culto, e ao mesmo tempo, fixarmos nossa visão para o futuro, na esperança que esta liberdade de ter ou exercer o direito ou não a uma crença religiosa ou não possuir nenhuma, sempre esteja plena. 

Na mitologia romana, Janus (ou Jano) é a divindade bifronte que mantém uma de suas faces sempre voltada para frente, o porvir, e a outra, para trás, em apreciação ao que já se passou. É o Deus da transformação e o mediador das preces humanas aos demais deuses.

Por quase quatrocentos anos, o Brasil, sob a égide dos seus processos de dominação e colonização, esteve sob o controle e influência estabelecidos pela imposição religiosa, numa verdadeira simbiose entre o poder religioso e a governança, reproduzindo os modelos especialmente Europeus, havendo assim como em diversos outros países, o estabelecimento de verdadeira dominação dos assuntos e espaços do que modernamente chamamos de Estado, pelas imposições advindas das concepções religiosas, o poder clerical e a igreja.

Exemplo explícito do poder do sagrado, representado pelo cristianismo do colonizador, sobre o poder temporal e as estruturas sociais no amálgama representado pela construção e modelo de civilização, foram as ações de conversão forçada às crenças cristãs, impostas aos povos indígenas e posteriormente aos escravizados. 

Neste longo período, vivenciamos desde o estabelecimento de pena capital para judeus, como disposto nos documentos primevos do arcebispado da Bahia de 1707, até a permissão da existência das igrejas protestantes históricas, contudo, sem que demonstrassem seus respectivos templos, considerando que a Constituição Imperial de 1824, permitia o culto doméstico ou particular para outras religiões que não a Católica Apostólica Romana, por esta ser a religião oficial e ter os privilégios decorrentes, isso em momento histórico bem à frente.

O ambiente pré-republicano, que dentre todo o seu contexto, trazia em seu bojo a inspiração nos ideais da república americana, da Revolução Francesa e do Iluminismo, contribuiu para o avanço; mesmo antes de nossa primeira constituição republicana; da proposição de instituição da separação Estado/igreja, advinda com o citado Decreto.

Tal necessária separação, veio se consolidar em nossa primeira Carta Republicana, permanecendo desde então, sempre insculpida enquanto princípio que orienta, inspira e direciona a relação estatal para com a religião e crenças.

Devemos reconhecer que esta separação por meio de norma, foi e ainda o é, objeto de permanente atenção e embates, para que a observância deste princípio da laicidade, não venha se tornar letra morta.

Podemos dizer que a laicidade se constitui numa contínua e ininterrupta luta, para que os interesses das estruturas religiosas ou de atores que as evocam, não venham se apoderar das instâncias estatais, de maneira que se perguntassem se realmente o Brasil é um Estado laico, responderíamos que sim, mas lembrando que, esta laicidade, ao longo do tempo, sempre sofreu ameaças, mesmo o Estado tendo se adequado para sob a necessidade de também atender a outro princípio consagrado no texto constitucional, o da liberdade de crença, instituído um modelo de relação pluriconfessional, baseada na defesa e garantia de direitos do pleno exercício da fé, através da recepção deste direito em suas normas infraconstitucionais, coadunadas com a devida separação dos distintos espaços estatais e religiosos. 

As tensões representadas pelos processos que buscavam manter alguma influência por parte da religião ao Estado, sempre estiveram presentes, tendo adquirido nos últimos trinta e cinco, quarenta anos, novas formas, as quais poderíamos considerar, tem se consolidado, a partir da mudança do panorama religioso nacional, com a diminuição da massa de católicos e crescimento de perspectivas cristãs de confissão evangélica.

O avanço de setores cristãos evangélicos, se consolidou tendo por base uma ânsia por espaços de poder político e econômico, aliado a interesses pessoais, demonstrando almejar uma substituição da influência religiosa católica romana no conjunto da sociedade, por novas versões de um “cristianismo” que se mostra excludente, fomentador de preconceitos e violências.

Envolto nestes processos, não podemos deixar de expressar que também ao longo do tempo, ocorreram influências e ingerências geopolíticas que atuaram junto a setores religiosos com interesses que se sobrepunham as questiúnculas locais, dos atores e grupos, para atuarem e interferirem em níveis e projetos maiores, que em verdade, colaboraram ou fortaleceram interesses comuns. 

Assim, destacamos neste amplo processo, o indiscutível avanço de setores religiosos junto às instâncias do Estado, ressalte-se, numa perspectiva de ocupar, sobrepujar espaços, influências do catolicismo romano, a começar pela ocupação de espaços nas esferas legislativas, posteriormente ampliadas para os espaços do poder executivo, com incidência ainda junto às estruturas de justiça, em clara e indiscutível afronta à laicidade.

No legislativo, o advento de “bancadas religiosas”; o advento de proposições esdrúxulas e atentatórias à laicidade, aos direitos civis, individuais e de minorias e à democracia; no executivo, alcaides “consagrando suas cidades à Deus” e “expulsando potestades demoníacas”; atuando nos sistemas de justiça, o advento de “associações de juristas evangélicos, católicos, espíritas”, todos com vistas a atuarem no sentido de impor suas crenças e valores a um conjunto social que sequer coaduna com suas respectivas visões de mundo, reinstituindo no país a influência religiosa nos assuntos do Estado, numa tentativa de tornar o que consideram “pecado” como lei para todos.

Estes exemplos preocupantes, levaram ao estabelecimento no campo social, de pautas morais, que em verdade se manifestam através do ataque a direitos civis, humanos, constitucionais e legais, de segmentos amplos da sociedade como mulheres, LGBTQIA+, indígenas, outros religiosos, como seguidores de matriz africana, mas também ateus e agnósticos, ou seja, uma onda moderna de situações análogas já ocorridas historicamente.

A questão nevrálgica é que estas pautas atuais passaram a ser expressas dentro dos espaços estatais, dentre os quais, especialmente no campo legislativo, onde as crenças e “pecados” pertencentes ao universo destes grupos, tentam ser impostas ao conjunto da sociedade como norma geral a todos, algo inadmissível e indiscutivelmente atentatório a um Estado laico.

Os resultados eleitorais de 2018, vieram agravar sobremaneira este quadro, na medida que somado a perspectivas de extremo conservadorismo, houve a utilização da religião como elemento de liga, de união entre estas forças, aprofundando um discurso e reforçando a adesão as pautas comuns a estes grupos ou lideranças religiosas, assim como no passado, evocando “batalhas espirituais” contra tudo e qualquer coisa que represente pensamento crítico, científico, alinhado aos direitos humanos e laico.

Neste recente período e ciclo onde o poder no Brasil esteve bem atrelado a um neofascismo, orientado, fomentado e comandado pela experiência nefasta do bolsonarismo, foi nítido o quadro de aprofundamento de interferência explícita no Estado, por parte da religião, onde representantes estatais passam a reverberar discursos “religiosos”, advogando que “a religião a partir deste momento, passaria a ter o espaço que lhe foi negado”, evocando ideologias com viés fundamentalista cristão, baseada em visões de grupos e setores de um cristianismo evangélico, que ampliou absurdamente sua força, num ápice do que viera sendo construído ao longo do tempo.

Assim, se já não bastassem agentes públicos de alto escalão, declararem-se “terrivelmente evangélicos”; outros atacarem a ciência e o pensamento científico, postura que foi responsável por centenas de milhares de mortes com a pandemia; diplomata dizer que “a liberdade religiosa também precisa incluir a possibilidade de converter aqueles que não têm religião”; ocupante da presidência dizer e “colocar no Supremo Tribunal Federal, ministro terrivelmente evangélico”, o Palácio do Planalto se transformar em espaço para cultos  louvores.

Se na esfera internacional, o movimento denominado “iniciativa pela liberdade religiosa”, nascido do conservadorismo “trumpista”, veio produzir amplas ações de difusão dos ideários ultraconservadores aliados a discursos com uso e em nome de um cristianismo, as quais se somaram ao advento no Brasil do “ministério Capitólio”, intensa iniciativa que busca aprofundar a interferência e presença “religiosa” nos espaços estatais, propondo que os agentes públicos desenvolvam suas ações e construam políticas, coadunadas com a bíblia, também se aprofundaram as ligações, inter-relações e ações, envolvendo estes atores religiosos com a Administração Federal, em episódios dantescos de corrupção, posteriormente revelados.

Assim, nesta data tão expressiva do aniversário da separação Estado/igreja, ao mesmo tempo que percebemos as graves ameaças à laicidade vivenciadas na era bolsonarista, como nunca antes, através de falas como “Deus acima de tudo”; “a igreja é quem pode salvar o Brasil”; “os pastores tem maior interesse na evangelização de índios”; “vamos ganhar o Brasil pra Jesus”; “a bíblia e não a Constituição deve nos guiar” ou ainda, “agora é: menino veste azul e menina veste rosa”, mas também, através de todas as ações de aparelhamento dos espaços estatais com “representantes” religiosos e suas visões fundamentalistas e afrontosas à laicidade, afora os diversos atos de improbidade e  conspícuas ações que foram tornando os organismos estatais, espaços de atuação e de defesa dos interesses de “lideranças” religiosas e grupos, temos que redobrar esforços para afastar todos estes processos de uma vez por todas, e com eles, suas visões que desconhecem o outro, seus valores excludentes, preconceituosos, que promovem a dissenção, a intolerância, o ódio, promovendo ainda, os atos necessários às devidas punições, trazendo uma reconstrução republicana que esperamos, saia fortalecida após estas experiências que sem sombra de dúvidas, somente atestam a necessidade da separação Estado/igreja. 

Tão mais grave foram estas influências das odes à obtusidade, que os discursos baseados na crença ilógica e eivada de fundamentalismo, somadas e até, comandadas pelo oportunismo político, pela má fé, pela desumanidade criminosa, contribuiu para o acúmulo das mortes pela pandemia, num cenário que somente foi agravado, visto que os mesmos discursos insuflaram a negação da ciência e uma guerra contra as vacinas.

Esperamos que este novo momento histórico onde a democracia e os princípios civilizatórios foram vencedores do processo eleitoral, venhamos atuar na dissuasão destes movimentos irracionais, anticivilizatórios, de lesa-humanidade, comandados pelo obscurantismo religioso e neofascista fomentador da morte.

Constatamos que passados 133 anos do advento da laicidade no Brasil, o momento histórico revela que sua defesa nunca foi tão necessária quanto agora, para impedirmos que venham se fortalecer as trevas da ignorância.

Somente um Estado laico e democrático, garante o respeito e o direito de todos e todas a uma existência livre para todas as crenças, bem como, um Estado que cumpra seu papel de abarcar a todos e todas.

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* Elianildo da Silva Nascimento é advogado, membro da coordenação da United Religions Iniciative (URI), membro da coordenação da Rede Nacional da Diversidade Religiosa (RENADIR) e da organização dos Encontros da Nova Consciência. Ativista de Direitos Humanos, atuou de 2003 à 2019 na construção das ações nacionais junto ao Ministério de Direitos Humanos voltadas à Diversidade Religiosa, dentre elas, a instituição do Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa (CNRDR),  extinto em 2019 e do qual integrou suas três turmas. Está coordenador executivo do Comitê Distrital de Diversidade Religiosa (CDDR).

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