

Orar juntos/as - ponto de chegada ou ponto de partida?
A dimensão pedagógica da Semana de Oração pela Unidade Cristã
Por Ir. Raquel de Fátima Colet*
A oração comum, especialmente os momentos propostos em torno da Semana de Oração pela Unidade Cristã (SOUC) - que este ano foi de 2 a 9 de junho -, tem se firmado como uma expressão privilegiada das disposições ecumênicas em nossas igrejas e comunidades. A prece do Senhor para que todos e todas “sejamos um” e “para que o mundo creia” (cf. Jo 17.21) interpela nossa consciência como pessoas de fé, e pergunta sobre o lugar que esse imperativo da unidade ocupa em nossa experiência pessoal e comunitária como discípulos e discípulas de Jesus.
A valoração do que também é conhecido por ecumenismo espiritual encontra ressonância na oficialidade do ensino e práticas das igrejas e organismos ecumênicos. Na tradição católica, por exemplo, fala-se do “primado da oração” como “alma do movimento ecumênico”, vinculada à experiência da conversão do coração (Ut Unum sint, 21). De outra parte, ao revisitarmos a história do Conselho Nacional das Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), verificaremos que uma das primeiras tarefas assumidas por este, ainda em suas articulações iniciais a partir de 1975 como Encontro de Dirigentes de Igrejas (EDI), foi assumir a preparação da SOUC em nível nacional.
Mais do que um evento pontual e cronologicamente delimitado, a Semana tem despertado, fortalecido e impulsionado outras iniciativas ecumênicas, as quais abrangem desde o fortalecimento dos vínculos nas relações interpessoais e intereclesiais, à proposição e realização de projetos comuns de maior envergadura. Os temas propostos para cada ano têm atuado como mobilizadores desses desdobramentos relacionais e práticos.
Frente a realidade plural na qual vivemos e convivemos, parece-nos oportuno recuperar essa dimensão pedagógica da SOUC. A indagação principal que colocamos é em que medida a Semana é ponto de chegada e ponto de partida de nossos percursos ecumênicos, e como esses dois movimentos ressoam efetivamente em nossa vivência cristã. Isso nos permite perceber se assumimos o diálogo e a unidade como desejo e mandato de Jesus, ou nos refugiamos em relações de diplomacia interinstitucional esporádica, convenientes na irreversível conjuntura de pluralismo que nos cerca.
Podemos falar da SOUC como um ponto de chegada quando consideramos as inúmeras articulações, estudos, encontros e reuniões que a antecedem. Essa preparação comporta dias, meses, anos e envolve muitas pessoas. Perpassa as instâncias oficiais e internacionais que orientam o tema e o subsídio comum, as adaptações do mesmo em nível nacional, o encontro entre lideranças das igrejas locais para organização de um cronograma de celebrações e eventos afins, até o simples e significativo gesto de pessoas das comunidades que se mobilizam em preparar um lanche partilhado ao final de uma celebração. Esses diferentes sujeitos, sejam eles indivíduos ou grupos, explicitam de formas diferenciadas a convicção ecumênica que os move, ao mesmo tempo que a aprimoram, ampliam, dilatam.
Mas também precisamos nos perguntar sobre as ressonâncias da Semana no cotidiano e nas estruturas de nossas igrejas, como também em nossa experiência pessoal de Deus. É uma questão de coerência com a oração comum que realizamos. Afinal, seria hipocrisia um ecumenismo de conveniência que se limita a uma política de boa vizinhança, de palavras afáveis e respeitosas entre nós, de discursos retóricos de valorização das diferenças proferidos por ministros/as de nossas igrejas uma vez ao ano, mas que não nos transforme em instrumentos do diálogo todos os dias, não só durante uma semana.
Em que medida a intenção da unidade dos/as cristãos/ãs e da comunidade humana é aquecida, revigorada em nossos momentos diários de oração? Continuamos a orar uns pelos outros, umas pelas outras, a cultivar a lembrança orante de bem-querença do/a outro/a? O encontro e a convivência com irmãos e irmãs de outras comunidades cristãs são capazes de nos envolver em um processo permanente de cura de nossos preconceitos e resistências, de revisão de vida e de práticas, de conhecimento mútuo e de reconciliação da memória ferida de nossas igrejas?
Ampliando o alcance pedagógico da SOUC, a oração comum também nos convida a empreender uma conversão de linguagem e revisão de nossos métodos catequéticos, evangelísticos que, por vezes, ainda nos engaiolam na autorreferencialidade e reproduzem motivações proselitistas. Numa analogia tecnológica – e ciente do limite que toda analogia possui - o empenho pela unidade não pode ser como aplicativo que acessamos quando necessitamos, e que podemos instalar e desinstalar quando nos convém. Ao contrário, a identidade cristã pressupõe a ecumenicidade com integrante das configurações fundamentais de seu “sistema operacional”, mesmo porque esse é um aspecto constitutivo da Igreja de Cristo – ser UNA, e una na diversidade, o que não é sinônimo de relativização das diferenças, nem de indiferentismo acrítico.
Vemos aqui uma oportunidade fecunda de autocrítica sobre o lugar da unidade na nossa autocompreensão eclesial. Em geral, não nos faltam documentos e declarações que atestam oficialmente esse compromisso. Quem sabe ainda precisamos de um impulso da graça que nos mova a abrir as gavetas de nossos escritórios, as prateleiras das bibliotecas, e revisitar as convergências e consensos já construídos, ou tomar conhecimento deles - e isso vale para os/as ministros/as e lideranças das igrejas (talvez, principalmente para eles/as) e traduzi-los do “teologuês” para a linguagem e a realidade nossas comunidades. Seria infidelidade com a oração de Jesus confinar os frutos já colhidos a um grupo seleto de peritos e estudiosos. É no contato com a vida do povo de Deus, que tem o diálogo entranhado em suas vivências cotidianas, que os nossos inúmeros papéis deixam de ser letra morta e podem contribuir como mapas seguros para a continuidade do caminho conjunto.
Por fim, orarmos juntos/as é nos dispormos a também juntos/as assumir a dimensão diaconal de nossa fé, e essa é uma tarefa irrenunciável da autêntica oração ecumênica. Os temas que meditamos na SOUC brotam da realidade e nos devolvem a ela. Como poderíamos orar a justiça, “nada além da justiça” (cf. Dt 16. 11-20), conforme meditamos no tema da SOUC desse ano, sem a disposição de vê-la traduzida na prática? É possível orar e ficarmos indiferentes às injustiças que perseguem, ferem e matam a vida de tantas pessoas, de grupos vulnerabilizados e discriminados, da Casa Comum ameaçada por mentalidades e sistemas predatórios? É possível orar juntos/as, reconhecendo que a primazia do dom da unidade reside na graça divina, e se apropriar sem escrúpulos do nome de Deus para justificar posturas de intolerância, xenofobia, de multifacetada violência? O Senhor que orou ao Pai para que sejamos um foi o mesmo que proclamou o Reino é dos pequenos, e que questionou os interesses dos poderosos – e também dos religiosos - de seu tempo.
É, no mínimo, arriscado pensarmos que a oração comum seria a “parte mais fácil” do diálogo ecumênico. Pode parecer que não levamos nossa oração a sério. Quem sabe, o diferencial do ecumenismo espiritual, que não prescinde das outras expressões do diálogo, seja o de nos desarmar - verbo esse oportuno para os tempos atuais - de nossos pré-conceitos, respostas prontas, hermenêuticas viciadas, e acolher com generosidade criativa as diferenças que nos tornam companheiros/as de caminhada, instrumentos da unidade que “Cristo quer, e do jeito que Ele quer”, como já intuiu Paul Couturier. Somos envolvidos/as, assim, em uma experiência mistagógica, nem ponto de chegada, nem de partida, mas expressão de nossa vocação peregrina, de discipulado aprendiz que se tece na fé, na comunhão e no serviço.
Ir. Raquel de Fátima Colet, Filha da Caridade (FC), atua no Movimento Ecumênico de Curitiba (MOVEC), e na Comissão Regional e Comissão Arquidiocesana de Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso, da Igreja Católica. É doutoranda em Teologia com ênfase em Ecumenismo pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), onde também integra o Grupo de Pesquisa Teologia, Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso.
Foto: Emerson Robson da Silva